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'Ou nós escrevia um rap ou nós virava mulher-bomba': Tasha&Tracie e o massacre sem sujeira

Foto do escritor: Lab RachaduraLab Rachadura


Toda mulher tem um arsenal de raiva bem abastecido que pode ser muito útil contra as opressões, pessoais e institucionais, que são a origem dessa raiva. Usada com precisão, ela pode se tornar uma poderosa fonte de energia a serviço do progresso e da mudança. E quando falo de mudança não me refiro a uma simples troca de papeis ou a uma redução temporária das tensões, nem a habilidade de sorrir ou se sentir bem. Estou falando de uma alteração radical na base dos pressupostos sobre os quais nossas vidas são construídas. (Audre Lorde, 2019, p. 159)

 

De acordo com Patrícia Hill Collins, é preciso termos alguma inventividade para analisar as narrativas de mulheres negras se quisermos construir epistemologias feministas negras. Isto porque, ao longo da história, a nossa presença em espaços de legitimação do conhecimento foi negado, fazendo com que encontrássemos outros caminhos de produção intelectual - às vezes destilando a poesia no cotidiano, como diria Audre Lorde. As gêmeas demonstram perfeitamente que a poesia não é um luxo, ao construir a própria estética quase num ritual poético da periferia (aqui vale lembrar que a moda é um dos elementos-chave para as duas artistas. Ficam como referência o episódio da série Afronta, e o blog Expensive Shit - os links estão no final do texto junto com as outras refs).

 

Tasha & Tracie vem ganhando significativa notoriedade na cena do rap brasileiro, que, como em outros espaços artísticos, tem como tendência a centralidade masculina. Suas rimas são carregadas de informações históricas, trazendo perspicácia e sofisticação no uso da raiva, da ironia e do duplo sentido. Em diversos momentos, é justamente a centralidade masculina que desafiam: “nós não corre atrás de p*ca”/ “não atrás de piru, eu vim foi pra fazer negócio” / “pra mano falocêntrico eu tô sem tempo”. Ignorar os símbolos da masculinidade na sociedade racista-sexista-capitalista é se colocar além dela, reiterando outros valores para a sua autodefinição. Não é sobre o amor pelos homens que elas querem falar, o papo é outro, é o seu corre que tá em jogo – e a representação dos homens negros e das práticas heterossexuais estão presentes em toda a obra das artistas, mas quem mandam são elas.

 

Em muitos outros momentos, a flecha vira para as mulheres brancas: “Drip de negona, nasci com a boca que elas compra, cacho de colombiana, unha de brasileirinha”. Na maioria das vezes, é sobre tudo isso junto:

 

Cês brinca que noiz respira e come rima com farinha

Pra comparar noiz com blanca de trança e MC que faz sopa de letrinha

(Pretas na Rua – Iza Sabino ft Tasha&Tracie)

 

Todo som de Tasha&Tracie vem marcado pela raiva. E, para Audre Lorde, a raiva é diferente do ódio:

 

O ódio é a fúria daqueles que não compartilham os nossos objetivos, e a sua finalidade é a morte e a destruição. A raiva é um sofrimento causado pelas distorções entre semelhantes, e a sua finalidade é a mudança. (Audre Lorde em Irmã Outsider)

 

Fato que as gêmeas abraçam a contradição e deixam a gente sem fôlego com os seus flows. A crítica ao racismo e ao sexismo também são bem delineados nas suas músicas, muitas vezes representado pela ratificação ou re-conceituação, como em Flo Jo, que critica as condições históricas narrando sob a sua perspectiva:

 

Pelas aula que nós dá, cês tinha que pagar um salário

Revolta não de escravo e sim de escravizado

Esforço algum apaga meu reinado

Minhas ancestrais decepava arrombados

Só de tocar o ouro, filhão, nós se sente vivo

Meu povo não é pobre, ele foi empobrecido

Não quer encarar os fatos, mas cê quer colar comigo

Manutenção de privilégios ou meu povo vivo

(Flo Jo, Tasha & Tracie e Ashira)

 

Em Poco, que constrói outra leitura para a relação sociedade-natureza, rompendo as dicotomias:

 

 

Jogaram negros e bebês num mar de sangue

É por isso que existe tsunami

 

&


Terremotos e furacões

São povos massacrados, sim

 

Ou ainda no feat que fazem na música de Don L, Auri Sacra Fames:


Morte em vida

É morrer debaixo da sua bota

 

&


Miséria é o rastro

Que vocês deixam onde passam

 

&


Negócio de branco é peculato

Produto final de um esquema grande

Calculado

 


bell hooks, em Olhares Negros: Raça e representação, afirma que as representações são instrumentos úteis para a dominação, interferindo diretamente no modo como nos experienciamos. Por isso, a autora propõe uma mudança no modo como nos representamos, a fim de alterarmos a conotação das nossas experiências, o que passa, necessariamente, por uma reflexão sobre os significantes que nos cercam. É preciso desestabilizar alguns (senão todos os) sentidos. Tasha & Tracie têm feito esse movimento com proeza, e apontado alguns caminhos para a nossa autodefinição.

 

 

Em Cachorras Kmikazes, uma das minhas preferidas, fica nítido o posicionamento das artistas em relação às estruturas sociais, iniciando com a menção ao MPIF (Mulheres Pretas Independentes das Favelas), movimento proposto pelas artistas, e finalizando com uma “deixa”. Vou dispensar apresentações para essa, dá uma olhada:

 

Cachorras Kmikazes (Tasha&Tracie e Ashira)

 

É o MPIF, hein!

No teste vocacional daria uma boa drug dealer

Pensou se eu monto a firma e recruto várias mina

Com o memo apetite de tomar todo esses trouxa

E não pague pau pros coxa

Iam virar minha tropa e iam me chamar de Blanco

E não ia ter pros bota

Nós ia meter as cara, explodir vários caixa

Atividade em alta e o lazer só na baixa

Fazer uns carro forte, investir tudo na quebrada

 

Cachorraz Kmikazes capturando la Plata

Tomamo de assalto porque cansamo de implorar

Bota a mão na cabeça e não reage ou vai rodar

O meu bonde é quatro letra e quatro preta que é poucas

MPIF é quatro letra e quatro preta que é poucas

MPIF é quatro preta que veio mudar essa porra

Ou nós escrevia um rap ou nós virava mulher bomba

Tenta pro nosso meio e nosso arsenal te tomba

 

Milhão, milhão, cadela top

Amam Bob Marley, eu sou Peter Tosh

A paz é o diploma que se recebe na morte

Não alugo a minha mente pra ninguém mais

Pagam com migalhas, tiram minha paz

Diferente socialmente, quando convém iguais?!

Interessante

Nos forjam pra camuflar seus flagrante

É lindo em Woodstock não pode no baile funk

O Cazuza negro é nóia e traficante (...)


Deus volta quando um velho morre, quando um novo nasce

Salmos são Mães de Maio com seus Messias mortos na vala

Apocalipse são egotrips e o vale da sombra da morte

É tipo o caminho do trabalho pra casa de casa pro trabalho

Falsos discípulos no plenário

Gênesis era menino

O inferno é duas quadra depois da minha casa

Vitimismo não cabe, é legítima defesa

Ontem nós era presa

Agora adivinha

Quem é que vai ser a janta em cima da mesa

Eu posso te dar um spoiler

Não vai ter a pele preta, entenda

Simbolismo, isso sim é um massacre sem sujeira

Vou te deixar na merda com sua própria consciência

Ou com essa merda que cê chama de consciência

No gueto o proceder e o fundamento nunca falha

Respeita minha b*c/ta ou faço uma na sua cara







Ao demarcar a consciência acerca das representações que querem construir,  Tasha&Tracie afirmam suas posições de sujeitas de “voz ativa” (ou “erguida”, se seguirmos pelos olhares bellhookianos), se opondo a qualquer passividade perante às situações de violência a que estão submetidas. E a oposição não é individual. O levante das Cachorras Kamikaze é coletivo. 

 

 

E, por fim, Audre Lorde nos ensina:


A raiva é uma reação apropriada a atitudes racistas, assim como a fúria quando as ações decorrentes dessas atitudes não mudam. Para as mulheres aqui presentes que temem a raiva das mulheres de cor mais do que as próprias atitudes racistas não examinadas, pergunto: A raiva das mulheres de cor é mais ameaçadora do que a misoginia que mancha todos os aspectos da nossa vida?

 

 


Referências mencionadas:

Audre Lorde – Irmã Outsider: Ensaios e Conferências. Tradução de Stephanie Borges, publicação da Editora Autêntica.

bell hooks - Olhares negros: raça e representação. Tradução de Stephanie Borges, publicação da Editora Elefante.

Don L ft. Tasha & Tracie - Auri Sacra Fames (música): https://open.spotify.com/intl-pt/track/3BL8FClujPbdn3Qz2vZaLi?si=042e01b3b3e84db4

Iza Sabino ft. Tasha & Tracie – Pretas na rua (música): https://open.spotify.com/intl-pt/album/5CzkyEDf1muZQdpv3Lvc5q?si=jFrgS7XSTJylN9r34Htncg

Patrícia Hill Collins – Epistemologia feminista negra, capítulo do livro Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico.

Tasha & Tracie Okereke no Afronta: https://www.youtube.com/watch?v=zR5CO8pvZ18

 

Referências da imagem:

Foto: Reprodução

Colagem: Lab Rachadura



Texto escrito por Cris Rosa - Lab Rachadura.

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