Notas sobre a cura - ou celebrando bell hooks
- Lab Rachadura
- 13 de fev. de 2024
- 5 min de leitura
Atualizado: 20 de fev. de 2024

“A cura era, para mim, lembrar quem eu sou, reunir os pedaços da minha história e reconectá-los. Ao recordar minha infância e escrever sobre o início da minha vida, eu estava mapeando o território, descobrindo a mim mesma e procurando um lar - enxergando, de maneira clara, que o Kentucky era o meu destino.” (bell hooks)
Lembro exatamente onde e como estava quando soube da morte de bell hooks. Abri a caixa de mensagens e pelo menos cinco pessoas tinham enviado a notícia, porque lembraram de algum texto que compartilhei dela ou sobre ela, da sequência de vídeos que fiz lendo trechos de “Tudo sobre o amor”, ou mesmo por ter me referido ao impacto que o livro “Olhares negros: raça e representação” teve sobre mim.
A morte, a cura, a vida, o amor,… tudo isso anda muito junto, né?
bellzinha (como chamo aqui em casa) nasceu e morreu no Kentucky, no último caso por escolha. Sobre isso ela conta no livro “Pertencimento: uma cultura do lugar”, onde também se mostra uma escritora profundamente consciente da sua espiritualidade, com um certo “misticismo”, mas sem deixar de lado a crítica que faz à sociedade como está. Não há separação, tudo isso anda mesmo muito junto. O primeiro parágrafo do primeiro capítulo começa com “Se alguém decide viver de maneira consciente, escolher o lugar onde vai morrer é tão importante quanto escolher onde e como viver”, e essa premissa vai ganhando várias camadas ao longo do texto, reforçando a assinatura de bell hooks.
Diversas vezes li reclamações sobre o modo como ela escreveu o “Tudo sobre o amor”, um dos seus livros mais comentados no Brasil, especialmente por se afastar daquela postura “dura” que aparece no Olhares Negros e no Anseios, por exemplo. Me pergunto se conseguiram sentir o caminho que ela faz, e o elo entre a vida e a escrita, que aparece desde a sua primeira publicação. Conceição Evaristo chamaria de escrevivência. Os tempos mudaram, o contexto político mudou, as pessoas vão mudando também…
Em algumas oportunidades, bell hooks falou sobre como ter lido livros de temas variados, - de textos religiosos à autoajuda, de teoria crítica às frases nos muros [“estilo é tudo” rs] - foi fundamental para que se tornasse a escritora que é, podendo dialogar com um público cada vez mais amplo, não somente em números, mas também em diferença. E, daqui, me pergunto qual a dimensão de nutrir-se conscientemente do contato com o diferente (não com o Outro, vale ressaltar) nos encaminha também para a cura enquanto processo.
“Se crescer em uma família extremamente disfuncional me deixou “desequilibrada”, sobreviver e estabelecer um lar longe da minha família natal me permitiu perceber o que eu tinha aprendido de positivo na minha criação. Dos lugares onde morei, o Kentucky é o único em que os anciões ensinam seus valores, aceitam a excentricidade, mostram pelo exemplo que chegar à autorrealização completa é a única forma de cura real. Eles me revelaram que os tesouros que eu estava procurando já eram meus.” (bell hooks)
Em Pertencimento, de onde saem todos os trechos aqui citados, a gente se encontra com uma bell hooks que já girou o mundo e ali retorna ao “seu destino”. A bell hooks que já leu e escreveu sobre tudo o que quis ou que pôde dentro do que quis. O papo é outro. O que interessa é a conexão entre os vales e a própria trilha, entre a plantação de couve (forte e de fácil manutenção) e os gestos delicados do avô, entre o “corpo terra” e o “corpo carne”. E há jeito de falar sobre pertencimento sem passar por aí?
Quando comecei a ler o livro, tinha acabado de retornar para Camaçari-BA, minha cidade natal, de onde tinha ficado fora por quase dez anos. Revisitando o livro hoje, encontrei tantas notas do tipo “tão eu”/”mainha”/”painho”, que fiquei caçando um termo que conectasse a escrevivência dela à minha leitura. Uma leiturivivência? Rs. Neste caso, Leda Maria Martins nos ajuda: o tempo espiralando, traçando aqui e acolá, quem sabe quantas vidas depois… e curando.
“A cura coletiva para as pessoas negras na diáspora só poderá ocorrer se nos lembrarmos de como pôr em prática nosso passado na zona rural. O negro que vive em comunidades rurais, que vive na terra, que leva uma vida simples, pode fazer nossas vozes serem ouvidas. A cura começa com a autodeterminação em relação ao corpo que é a terra e ao corpo que é nossa carne.” (bell hooks)
Autodeterminação, autoconfiança e autorrealização estão diretamente vinculadas à relação com a natureza, vista por bell como um “santuário, um refúgio, um lugar de cura para as feridas”. Em muitos momentos, a leitura me lembrou a forma como Ailton Krenak se refere à natureza, sobretudo por não objetificá-la. A despeito da geração “hareboo”, das plantinhas em vidros e fotografias instagramáveis, o que bell hooks nos propõe é uma posição de escuta. Se em “Olhares negros” ela reposiciona o nosso olhar; em “Erguer a voz” ela nos coloca diante de outra relação com a fala; e em “Tudo sobre o amor” ela mexe com os nossos poros; em “Pertencimento, uma cultura do lugar”, a autora amplia a nossa capacidade de ouvir o vento, as folhas, a chuva e tudo o que nos convida a colocar os pés no chão, a encontrar “um lugar de descanso para a alma” – não raro, aquela a que se alcança deixando “a sua natureza se manifestar”, como cantou Marisa Monte.
Não significa dizer com isso que os capítulos não versam questões fundamentais acerca do racismo, da segregação, como enfatiza nos “mais uma vez: a segregação precisa acabar” e “de volta à ferida”. O que bell hooks faz é levar a consequências ainda mais profundas, em alguns casos até polêmicas, o significado de ser uma mulher negra com o seu passado, escapando toda e qualquer essencialização. Findo essa reflexão com mais um trecho:
Sem dúvida, todo ensaísta tem um ou outro texto que o faz parar, pensar e pensar, perguntando-se de onde veio aquilo. É difícil explicar para não escritores que ideias, palavras, o ensaio inteiro em si, podem vir de um lugar misterioso, sair das profundezas do inconsciente, de tal forma que até o autor se espanta com o que surge. Assim, escrever é uma revelação. É um chamado e um movimento. Ilumina. (bell hooks)
[...]Este texto não acaba aqui, mas é com ele que celebro bellzinha e o seu o “começo, meio e começo” (para lembrar Antônio Bispo).
Referências mencionadas:
- Ailton Krenak – Ideias para adiar o fim do mundo – Companhia das Letras
- Antônio Santos Bispo – A terra quer, a terra dá – Editora Ubu (apoiadora da Lab Rachadura. Para adquirir: https://www.ubueditora.com.br/terra-da-terra-quer.html)
- bell hooks – Pertencimento: uma cultura do lugar – Editora Elefante
- bell hooks – Anseios: raça, gênero e políticas culturais – Editora Elefante
- bell hooks – Tudo sobre o amor: novas perspectivas – Editora Elefante
- bell hooks – Olhares negros: raça e representação – Editora Elefante
- bell hooks – Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra – Editora Elefante
- Leda Maria Martins – Coleção Arte e Teoria – Relicário Edições (apoiadora da Lab Rachadura. Para adquirir: https://www.relicarioedicoes.com/livros/colecao-arte-teoria/)
- Marisa Monte – A primeira pedra: https://open.spotify.com/intl-pt/track/372rx8AKjuyr3WZzJGum6X?si=2f19eb4d64504839
Referências da imagem:
Fotos: Reprodução
Colagem: Lab Rachadura
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