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Iza Sabino e a anti-espetacularização das mulheres negras

  • Foto do escritor: Lab Rachadura
    Lab Rachadura
  • 16 de fev. de 2024
  • 4 min de leitura

Atualizado: 20 de fev. de 2024




Quando ouvi o álbum Glória (2020), de Iza Sabino, me identifiquei imediatamente por dois aspectos: os questionamentos sobre o cotidiano das mulheres negras; e a coragem de falar sobre o relacionamento afetivo-sexual entre mulheres, sendo ela uma mulher negra.


Em 2019, embora muitas rappers brasileiras já falassem a respeito, eu tinha pouco acesso aos seus trabalhos, o que provavelmente transpareça o modo como a minha educação musical se deu – me afastando do rap e do funk, me aproximando da “MPB”, do samba e do reggae. A minha relação com o rap se inicia com a teoria, com a apresentação de letras majoritariamente escrita por homens negros e do seu significado para pessoas que conheciam os cotidianos ali narrados, mas o som demorou a compor o meu dia a dia. Não significa dizer, com isso, que cresci longe da música negra. Edson Gomes, Cartola, Luiz Melodia, Djavan, Gil, Alcione e tantos outros compõem algumas das memórias mais marcantes da minha história. Mas, note, ainda assim eram homens negros em sua maioria.


Do início ao fim do álbum, Iza Sabino traz relatos que demonstram o seu posicionamento crítico frente à rasa representatividade apresentada pelo neoliberalismo. Nos últimos sete anos, questionamentos acerca do significado de “empoderamento” e “representatividade” se intensificaram a ponto de serem negados por algumas autoras. Na internet, o slogan “representatividade importa” foi se esvaziando, sendo resumido à presença de pessoas negras em comercial de desodorante – aqueles mesmos que faziam uma linha específica para peles negras –, ao aumento no número de seguidoras entre influencers negras e as fotos com livros de autoras negras, com leitura muitas vezes interrompida no terceiro capítulo.


Numa disciplina de Teoria Crítica que cursei durante o mestrado na UFBA (alô, prof. Câmara!), precisei escolher um dos livros da ementa e relacioná-lo ao tema da minha pesquisa. Escrevi sobre o livro Neoliberalismo: história e implicações, de David Harvey, discutindo a maneira como as pautas historicamente construídas pelas feministas negras vão sendo apropriadas pelo neoliberalismo, e nos são entregues, diversas vezes, sob forma de novas teorias – livros e mais livros que questionam o racismo sem beirar qualquer discussão sobre o capitalismo, ou apenas mencionando-o, sem de fato considerar a classe social uma estrutura. Para escrever, tratei especificamente dos conceitos de representatividade, empoderamento e interseccionalidade (nas suas aplicações desperdiçadas, vista como conceito guarda-chuva entre textos feministas), pontuando as armadilhas de limitarmos os nossos horizontes às políticas públicas. Elas encerram as nossas lutas?


Joice Berth, no livro Empoderamento, lançado na coleção Feminismos Plurais, reflete sobre a história do conceito, apontando os seus limites e potencialidades e demonstrando a sua banalização. Repare: não é que não haja ganhos com os sentidos de empoderamento, mas que devemos ter cautela para com o seu uso. Esse processo de esvaziamento é comum a diversos outros conceitos, um movimento próprio da neoliberalização. Joice ilustra isso assertivamente:


“Empoderar dentro das premissas sugeridas é, antes de mais nada, pensar em caminhos de reconstrução das bases sociopolíticas, rompendo concomitantemente com o que está posto entendendo ser esta a formação de todas as vertentes opressoras que temos visto ao longo da história. Esse entendimento é um dos escudos mais eficientes no combate a banalização e esvaziamento de toda a teoria construída e de sua aplicação como instrumento de transformação social.” (BERTH, 2018, p.16)


A expressão que ecoa em Pretas na rua (Iza Sabino ft. Tasha&Tracie) é: “Não tratam pretas na rua igual na internet!”:





Autoestima baixa

Sem grana na minha conta

Tentando fazer o bem

Sem cortar a minha onda

A depressão me sonda

Ansiedade enforca

Tipo antes

Quando eu batia de cara na porta

Não tratam pretas na rua igual na internet!

(Iza Sabino em Pretas na Rua)



Se, por um lado, é inegável a crescente presença de mulheres negras nos considerados “espaços de poder” [mas não no STF, risos], por outro lado, o retrato das desigualdades não se altera na mesma proporção. Lélia Gonzalez, nos anos 1980, já dizia que a situação das mulheres negras de hoje não é tão distinta daquela vivida pelas mulheres escravizadas. As condições de trabalho mudaram (para algumas), mas a posição perante outras situações sociológicas, permanece similar.


Em Pensei (2020), Iza Sabino canta:


Continuo no busão

Pensando em ter dinheiro

Penso até que eu não tenho sorte

Até pensei nessa morte

Que faria descansar a minha mente

Tristeza gerou depressão

Pra uma mulher preta não

Presta se você não sabe

Como é sentir medo



Se considerarmos o acesso à renda, proporcionalmente, as mulheres negras recebem 48% do que os homens brancos ganham, 62% do que recebem as mulheres brancas. Esses dados aparecem na matéria "Mulheres negras ganham menos da metade que homens brancos no Brasil, mostra novo estudo", escrita por Leonardo Vicelli na Folha de São Paulo. Na mesma matéria consta o gráfico:





Além destes, outros dados podem ser pensados, como o percentual de mulheres negras nas ciências. Na matéria escrita por Pâmela Dias no O Globo em 2023, intitulada "Minoria na ciência, mulheres pretas e indígenas não recebem as bolsas de pesquisa mais valorizadas", nota-se que a distribuição das bolsas de pesquisa vigentes se dão da seguinte maneira:


46,5% para homens brancos

31,3% para mulheres brancas

13,1% para homens negros (pretos, 2% e pardos, 11,1%)

05,6% para mulheres negras (pretas, 0,8% e pardas, 4,8%)



Se deparar com o contraste entre a imagem espetacularizada das mulheres negras (divas, maravilhosas, perfeitas sem defeitos) e o nosso cotidiano, é sentir raiva, tristeza e indignação. Esses sentimentos ficam explícitos em Pretas na rua, que carrega no nome a síntese do que, em meu olhar, representa o álbum: o dia a dia de ser quem é e o processo de autodefinição e autodeterminação produzido no “apesar de” - tão comum a todas nós. Isso passa necessariamente pela crença na própria história (que passou e que virá).


Em Avisa (2020), Iza Sabino canta:


Tudo se modifica

Dependendo da escrita

O que muda é a vírgula dando sentidos novos

Eu que tô nessa linha fazendo o que eu posso

Escrevendo o que eu quero e dando sentidos novos

Ô

E será que é pedir muito nessa vida?

Meu coração tá em cada batida

Avisa que eu vou lá



Ouça o Glória:




 

 

Referências mencionadas:


David Harvey - O neoliberalismo: história e implicações (livro)

Joice Berth - Empoderamento (livro)

Lélia Gonzalez - Racismo e sexismo na cultura brasileira (artigo)



Referências da imagem:


Foto: Reprodução.

Colagem: Lab Rachadura




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