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Erguendo a voz num “Movimento rápido dos olhos”

  • Foto do escritor: Lab Rachadura
    Lab Rachadura
  • 16 de fev. de 2024
  • 7 min de leitura

Atualizado: 20 de fev. de 2024


Eu não tenho medo

De erguer a minha voz

Aflorar os nervos

Combater o meu algoz

Percorrendo o seu olhar

Eu consigo enxergar

O que há por dentro

Permaneço atento

Pois o enfrentamento

Me instiga a cantar


(Rashid e Marcelo Belini – Deixai toda esperança)


Foi com esse trecho que fui capturada por Rashid em “Movimento rápido dos olhos” (2022), e é por ele que quero começar a falar sobre pelo menos três entre vários temas que permeiam o álbum. A primeira coisa que me toca é a relação entre o silêncio e a voz, essa voz erguida, destemida em si mesma.


bell hooks conta que na comunidade em que cresceu, “erguer a voz”, “responder”, “retrucar”, significava “falar como uma igual a uma figura de autoridade. Significava atrever-se a discordar e, às vezes, significava simplesmente ter uma opinião”. Mas isso não se restringe à realidade da autora. Quantos castigos recebemos por elevar a voz na infância e, para algumas pessoas, mesmo após a infância? Quanto da nossa criação dizia sobre as imposições coloniais? E quantas marcas desse processo criam paralelos com um passado mais distante?

 

Erguer a voz, para quem foi historicamente silenciado, pode ser “um ato de coragem, um ato de risco e ousadia” (hooks, 2019). Neste caso, pode ser útil lembrar a imagem da Máscara de Anastácia, que nos guia por um traço histórico não linear costurado por memórias de ferros que aprisionavam a boca, algo que Grada Kilomba representa em maiores detalhes no livro Memórias da Plantação: Episódios de racismo cotidiano.

 

Também no livro “Erguer a voz”, bell hooks sugere que é preciso ter alguma cautela ao tentar “encontrar uma voz”, para que a gente não corra o risco de cair em banalizações ou romantizações, privilegiando “atos de fala em detrimento do conteúdo do discurso”. Ela diz:

 

Falar como um ato de resistência é bastante diferente de uma conversa corriqueira, ou da confusão pessoal que não tem nenhuma relação com alcançar consciência política, desenvolver consciência crítica. (bell hooks,

 

Não é falar por falar. E, nessa perspectiva, Rashid faz menções diretas e indiretas à ruptura do silêncio ao longo do álbum, representado no conteúdo e em suas formas: os diálogos com a própria consciência desloca o silêncio para outro plano. Não é que não existia voz, é que ela ecoava por dentro, e talvez esse seja um dos jogos mais sagazes do disco – já que mesmo com todo o silêncio imposto, muitas coisas se elaboravam, inclusive as rotas de fuga.

 

Na penúltima estrofe de Deixai toda esperança, o rapper diz:


Eu não tenho medo

De perder a minha voz

Sem ressentimento

Desfazendo se constrói

 

Esse trecho me remete a Audre Lorde, quando diz uma das suas máximas: o silêncio não irá te proteger. E qual é a potência da voz nesse contexto? O que suplica os nossos gritos? Talvez aqui valesse um papo com Fred Moten, mas vou deixar pra outro momento.

 

O álbum é recheado de referências, com rimas e questionamentos que fazem a gente dar uma pausa nas músicas logo que acabam, porque, não raro, lidar com a própria consciência pede um pouco de silêncio - e na sociedade do consumo frenético, a gente às vezes se passa e acaba consumindo tudo, até os ideais políticos (o que, aliás, também é criticado no álbum). 

 

Esse percurso da crítica fica bem marcado no feat de Don L em Linha de Frente (vou deixar pra falar sobre a excepcionalidade de Don L em outro texto, ele é viciado em roubar cenas):


Cansado de ver gente falando sobre o que não sabe

Mentira por todos os lados da geração lacre

Num 'guento mais o Insta'

Cansado dessa confusão entre vida e publicidade, arte, geração de likes

Cansado dessa sensação que todos 'tão fingindo ser o que não são

E crendo que o resto do mundo não

Cansado de coaches, cansado de posts

Cansado de estar sempre cansado e cansado de dor

Cansado desses traps, baby

Cansado desses boombaps falando desses traps, tipo esse

Cansado desse rapper Don L cansado desses

Publicitários confundindo música e marketing em nome deles

Cansado de bots, cansado de blogs

E todo dia um bota amarra um favelado num poste

O máximo que rola é um protesto nos trending

Mobilizem os bilionários, não queremos cops no mercado (racistas)

Eles vendiam corpos no mercado

Agora dizem querer corpos diversificado' em postos de mercado

Mas são os donos do mercado que escravizaram os corpos

Que fizeram deles bilionários

Cansado do tal de mercado, cansado da bolsa

Cansado de ver meus comparsa tirado de trouxa

Com a mema estampa de bolsa Gucci ou Prada

Comprada no camelô e ainda propaganda grátis, chapa

Cansado desses porcos de corporação usando corpos

Cooptados contra nosso próprio

Cansado do tal de mercado que elege a bancada da bala

Fecha com os moderados ou com Bolsonaro

Cansado de saber que eu não vou descansar

Não vou me aposentar, essa porra é tipo "fique rico ou morra"

Tão cansado de tudo que eu sou todo disposição

Pra morrer botando abaixo essa porra





Mas a pergunta que bell hooks faz e eu repito é:


Quem está ouvindo e o que escutam?

 


.

 


Outro tema que me chamou a atenção foi o caminho de construção da própria subjetividade. Oposto a toda positividade imposta, ele canta um abraço quentinho em “Tem dias que”, onde admite as dores cotidianas, aquelas que parecem ser resolvidas apenas na força de vontade, mas que “só passando mesmo pra passar”. Naquele suco de realidade, diz com todas as letras “tem dias que não tô bem, que mal tem?” Algo que tantas vezes repetido por um homem negro, também nos faz refletir sobre os efeitos das discussões sobre masculinidades nos últimos anos.  Afinal, quem pode assumir a dor e a tristeza sem acusações de vitimismo?



Ninguém tá todo o tempo pra cima, 100 por cento

Imagina um terremoto e você no epicentro

Motivação todo dia, busque dentro de si

Isso aí é coisa de coach, fi, eu sou MC


(Rashid em Tem dias que)

 


E tem alguma coisa nessa música que me lembra a frase de Luiz Gama, que não trata a liberdade como ausência de repressão, mas como a possibilidade “de ser infeliz, onde e como queira”.

 

Mas quem é que atura pessoas negras tristes?

 

Aí, melodicamente na contramão, mas caminhando no mesmo sentido, vem “Ver em cores”, que é a coisa mais lindaaaa! Com feat de Liniker, a expressão que se repete no refrão é: eu quero caber no amor sem perguntar. A despeito de toda discussão que poderíamos fazer sobre os sentidos do amor, esse “sem perguntar” me pega fundo, e sendo Liniker a voz que canta (não poderia ter alguém melhor pra esse dueto), tudo bate mais fundo ainda.

 

Há duas coisas ali que considero fundamentais: esse “caber no amor sem perguntar”, para quem o amor sempre foi entregue como um troféu (sorte de quem o tem) e não como uma premissa básica (não é pra todo mundo, há quem não mereça); e o que Rashid fala logo após o segundo refrão: “quanto mais eu ando, mais entendo a beleza de pertencer”. O mundo inteiro mora nesse verso!

 

Nessa música, diferente de algumas outras que até consigo pensar na letra sem a melodia, tem um negócio de sentir mesmo:





Nenhum dos sentidos apontados, o estar bem, o amor, o pertencer, vem desgarrado da consciência política, do posicionamento crítico, vale ressaltar. Durante todo o álbum diversos valores são mencionados, e a coletividade se apresenta desde o primeiro momento como condição para uma efetiva mudança na sociedade, o que passa pelo reconhecimento de não estar só, de valorizar a própria história. Em “Um brinde a todos que se foram” ele diz:

 


A vida é injusta e loka, ao mesmo tempo é bela

Quando vê, escorregou pelos seus dedos, frágil como a sua tela

Trago cada um comigo, é a grandeza disso aqui

E onde quer que eu pise nunca vai ser só o Rashid ali 


 

A conclusão a que cheguei quando ouvi o álbum inteiro de primeira foi: é um convite para ação. 2022 e os anos que o antecederam foram tensos politicamente, ou mais evidentemente tensos, porque para quem tá no campo e na favela paz nunca foi condição, independente de quem assume a liderança institucional. Mas fato é que a atmosfera pesou demais, gerações que nunca se depararam com o sentido prático de “política”, em alguma medida começaram a se movimentar, mas diversas vezes os movimentos eram esvaziados, individualizados. Armengados. E me parece que o pouco hype do álbum diz sobre uma profundidade que geral não tem tido disposição pra encarar, embora comunique diretamente com quem o acessa.

 

O começo do álbum é um anúncio: diante de uma premissa de mudança catastrófica no mundo, onde se acirram as disputas entre aquele que se autointitula O Patriarca e os Samurais (super atual), uma pergunta é lançada em Oráculo é: “E aí? Você não vai fazer nada?”

Toda a construção remete a um roteiro (o que me remete um pouco ao RPA2, de Don L), pelos diálogos propostos nos interlúdios e pelas cenas que parecem preencher cada espaço. Daria um filme...





“Os tripulantes são como um navio moderno e bem tripulado pela alta cúpula, mas o povo... O povo é como o mar. Esse navio só está ali porque nós existimos e nossa fúria pode fazê-los afundar. O que me dizem?”

(Contexto, café e coragem de Rashid)



O álbum é uma imersão na subjetividade de quem constrói/tenta construir uma consciência crítica e é também um convite. Um convite para partir pra prática, para a organização coletiva, e um demonstrativo de toda disposição para gritar. Por outro lado, me parece uma busca consciente pela própria voz – aquela que se refaz na própria história, ao “tomar conta da própria narrativa”. Mais uma vez recordo Audre Lorde, porque além de romper com o silêncio, há um belo uso da raiva: despejá-la em seu caderno e traduzi-la em sons, com seu “flow quebra-queixo”.


Por essas e outras é um álbum para se permitir sentir com “olhos, ouvidos e todos os sentidos”.

bell hooks diz:


A luta para acabar com a dominação, a luta individual para se opor à colonização, deslocar-se de objeto para sujeito, expressa-se no esforço de estabelecer uma voz libertadora – aquela maneira de falar que não é mais determinada por sua posição como objeto, como ser oprimido, mas caracterizada pela oposição, pela resistência. Ela demanda que paradigmas mudem – que aprendamos a falar e também a escutar, para ouvir de uma nova maneira. (bell hooks em Erguer a voz, p. 50)

E aqui, mais uma vez, repito a sua pergunta:


“Quem está ouvindo e o que escutam?”

 





Referências mencionadas:



bell hooks - Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra - Tradução de Claudia Bocaiuva Maringolo, publicação da Editora Elefante (livro)


Audre Lorde - Irmã Outsider: Ensaios e Conferências - Tradução de Stephanie Borges, publicação da Editora Autêntica – (livro)

 


Grada Kilomba - Memórias da Plantação: Episódios de racismo cotidiano - Tradução de Jess Oliveira, publicação da Editora Cobogó.



 

Referências da imagem:


Fotos: Reprodução

Colagem: Lab Rachadura

 

 


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