Delineando a autodefinição: de Victória Santa Cruz a Tássia Reis
- Lab Rachadura
- 16 de fev. de 2024
- 4 min de leitura
Atualizado: 20 de fev. de 2024

Tássia Reis é uma das maiores rappers do Brasil e isso não deve ser novidade para você. Em suas músicas, faz questão de marcar a sua posição e contar sobre as relações com a família, com a rua, com o dinheiro e com o próprio corpo, transitando lindamente entre questões materiais e subjetivas.
Em Preta D+, música que compõe o álbum Próspera (2019), Tássia Reis narra uma série de discriminações a que foi submetida devido ao racismo, experiências comuns a diversas mulheres negras no Brasil: ter o seu cabelo, sua aparência, ou a cor da pele usados como justificativas para discriminação.
Vocês me disseram que não poderiam me contratar
Porque minha aparência divergia do padrão
(Que padrão?)
Que eu era até legal
Mas meu cabelo era crespo demais (crespo demais)
Talvez alisar seria uma solução
Não, não, não, não, não, não
Que eu tinha que me enxergar
Porque toda moça preta demais
Preta demais sabe que o seu destino é limpar chão
(Chão!)
A gente pode se pegar, mas, ó
Você cria expectativa demais
(Cria demais)
Além do mais, eu amo a Becky do cabelo bom
Ao me atentar à letra, percebi imediatamente que a história se cruza com o famoso poema da artista peruana Victória Santa Cruz, Gritaram-me negra:
Tinha sete anos apenas,
apenas sete anos,
Que sete anos!
Não chegava nem a cinco!
De repente umas vozes na rua
me gritaram Negra!
Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! Negra!
"Por acaso sou negra?" – me disse
SIM!
"Que coisa é ser negra?"
Negra!
E eu não sabia a triste verdade que aquilo escondia.
Negra!
E me senti negra,
Negra!
Como eles diziam
Negra!
E retrocedi
Negra!
Como eles queriam
Negra!
E odiei meus cabelos e meus lábios grossos
e mirei apenada minha carne tostada
E retrocedi
Negra!
E retrocedi . . .
Negra! Negra! Negra! Negra!
Negra! Negra! Neegra!
Negra! Negra! Negra! Negra!
Negra! Negra! Negra! Negra!
E passava o tempo,
e sempre amargurada
Continuava levando nas minhas costas
minha pesada carga
E como pesava!...
Alisei o cabelo,
Passei pó na cara,
e entre minhas entranhas sempre ressoava a mesma palavra
Negra! Negra! Negra! Negra!
Negra! Negra! Neegra!
Até que um dia que retrocedia, retrocedia e que ia cair
Neusa Santos Souza, em Tornar-se negro, afirma que
Saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade, confundida em suas perspectivas, submetida a exigências, compelida a expectativas alienadas. Mas é também, e sobretudo, a experiência de comprometer-se a resgatar sua história e recriar-se em suas potencialidades.
É neste ponto que Tássia Reis e Victória Santa Cruz se conectam neste texto. Há uma virada no processo de autodefinição que aparece nas duas narrativas, que demonstra o compromisso em resgatar e recriar a própria história.
Em “Preta d+”, Tássia Reis ressignifica:
Palavras cortam como facas
Dizem que a carne é fraca
Por isso eu sinto tanta dor
E apesar de tantos tapas
Dizem que aquilo que não mata Fortalece o sofredor
O mundo tem que melhorar
Eu já mudei minha percepção
Agora eu sou preta demais
Mas, não na sua conotação
Eu sou demais, eu sou incrível
Eu sou demais e não sou invisível
Eu sou demais
Eu sou incrível, eu sou demais
Eu sou preta demais
E Victória Santa Cruz, recria o sentido de “Negra”:
Negra! Negra! Negra! Negra!
Negra! Negra! Negra! Negra!
Negra! Negra! Negra! Negra!
Negra! Negra! Negra!
E daí?
E daí?
Negra!
Sim
Negra!
Sou
Negra!
Negra
Negra!
Negra sou
Negra!
Sim
Negra!
Sou
Negra!
Negra
Negra!
Negra sou
De hoje em diante não quero
alisar meu cabelo
Não quero
E vou rir daqueles,
que por evitar – segundo eles –
que por evitar-nos algum disabor
Chamam aos negros de gente de cor
E de que cor!
NEGRA
E como soa lindo!
NEGRO
E que ritmo tem!
Negro Negro Negro Negro
Negro Negro Negro Negro
Negro Negro Negro Negro
Negro Negro Negro
Afinal
Afinal compreendi
AFINAL
Já não retrocedo
AFINAL
E avanço segura
AFINAL
Avanço e espero
AFINAL
E bendigo aos céus porque quis Deus
que negro azeviche fosse minha cor
E já compreendi
AFINAL
Já tenho a chave!
NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO
NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO
NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO
NEGRO NEGRO
Negra sou!
Dialogando com conceitos já existentes e considerando-os temas chave para o pensamento feminista negro, Patrícia Hill Collins afirma no texto “Aprendendo com a outsider within” que:
Autodefinição envolve desafiar o processo de validação do conhecimento político que resultou em imagens estereotipadas externamente definidas da condição feminina afro-americana. Em contrapartida, a autoavaliação enfatiza o conteúdo específico das autodefinições das mulheres negras, substituindo imagens externamente definidas como imagens autênticas de mulheres negras. (Patrícia Hill Collins)
Ao criar outro sentido para “negra” e “preta demais”, Victoria Santa Cruz e Tássia Reis não produzem uma ressignificação esvaziada (tão comum ao neoliberalismo), elas se reposicionam diante das suas identidades, construindo um discurso sobre si mesmas, como propõe Neusa Souza, ou mais diretamente, tornando-se negras.
Você consegue delinear o caminho que construiu para a sua autodefinição? Quando precisa falar sobre si, como você se apresenta? Quais foram as referências que te ajudaram a trilhar esse caminho?
Referências mencionadas:
Tássia Reis - Preta D+ (música): https://www.youtube.com/watch?v=uuvlR6Stm5QGritaram-me
Victória Santa Cruz - Gritaram-me negra - (vídeo performance): https://www.youtube.com/watch?v=RljSb7AyPc0
Victória Santa Cruz - Gritaram-me negra (transcrição do poema): http://www.emdialogo.uff.br/content/gritaram-me-negra
Tornar-se Negro – Neusa Santos Souza (livro)
Patrícia Hill Collins - Aprendendo com a outsider within*: a significação sociológica do pensamento feminista negro – (artigo): https://www.scielo.br/j/se/a/MZ8tzzsGrvmFTKFqr6GLVMn/?format=pdf&lang=pt
Referências da imagem:
Fotos: Reprodução
Colagem: Lab Rachadura
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